Uma ideia
Então, semana passada eu hitei no twitter por conta de uma fofoca sobre minha vizinha acumuladora de pombos. Como não consigo falar tudo por lá, tive a ideia de destrinchar um pouco mais essa personagem das ruas do centro de Recife aqui no Boletim.
Tudo começou há dois anos, quando me mudei para esse prédio antigo, bem no miolo da cidade, construído na década de quarenta. Tudo nele emanava história de terror: o elevador antigo, de madeira, subindo e descendo há mais de setenta anos; os detalhes art déco, parecendo American Horror Story - Hotel; os moradores velhos e silenciosos; o zelador que mais parece um espírito habitante dessa construção; a igreja centenária, nossa vizinha, com os badalos dos sinos a cada hora e as missas rezadas em latim; as palavras misteriosas escritas na calçada.
No nosso primeiro dia aqui, eu e meu marido estávamos no elevador quando alguém segurou a porta externa, fazendo a interna se abrir. Uma senhora, idosa, em seus setenta anos, de óculos escuros, curvada feito a letra C, com roupa toda estampada de animal print e exalando um cheiro forte e desagradável, abriu a porta e colocou a cabeça para dentro do elevador, falando alarmada:
— Vocês são novos aqui, né?
Eu e ele nos entreolhamos e dissemos que sim. Ela então disse:
— Cuidado com esse elevador, já morreram mais de cinco pessoas nele. Inclusive uma mulher grávida, que caiu do sexto andar e foi perfurada pelas ferragens aí embaixo.
Ela fechou a porta e nos deixou sozinhos no elevador, que subiu normalmente ao nosso andar, chacoalhando, dando um grande solavanco no destino final. Ele é assim, às vezes não vai para onde você quer, parece que vai se desmontar a qualquer momento, pode parar entre dois andares. Tem um buraco na parede que sempre tampam e logo depois volta a aparecer. Ah, e tem um botão de um andar que não existe no prédio — nunca ousei apertar.
Enfim, alguns dias depois reencontramos essa velha. Numa praça. Sentada num banco. Rodeada por centenas de pombos. Um deles em seus braços, aninhado feito um bebê.
Ficamos obcecados. Passávamos 80% do nosso tempo falando sobre ela e nos outros 20% torcíamos para que alguém falasse sobre ela para a gente poder falar mais.
Outro dia, a encontramos no saguão do edifício. Resmungava sozinha, e quando nos viu começou a falar teorias de conspiração, como, por exemplo, que a água da cidade era envenenada e estava fazendo os cabelos dela caírem. Foi aí que eu me perguntei se a história das pessoas mortas no elevador era verdade. Resolvi investigar e perguntei ao zelador, que parecia gostar de fofocar partilhar informações, e ele disse que apenas uma pessoa tinha morrido, uma mulher, que realmente caiu do sexto andar, mas não estava grávida. Numa história de terror, esse zelador obviamente estava morto há cinquenta anos e era apenas um espírito tentando me convencer a permanecer nesse prédio até morrer acidentalmente e virar mais um fantasma aprisionado aqui.
Passei a encontrá-la várias outras vezes, perambulando pelas ruas dos arredores, carregando um monte de sacola, um carrinho de feira e jogando milho nas esquinas, sendo seguida por uma revoada de pombos à la Hitchcock.
Durante a pandemia, a maioria dos moradores — idosa — permaneceu reclusa em seus apartamentos, enquanto a velha dos pombos — vou chamá-la de Bernadete, um nome falso — vivia saindo. Sem máscara. Se é verdade ou não, não sei, mas uma vez me disseram que ela passava cocô de pombo na pele e no cabelo, alegando melhorar o sistema imunológico. Bom, para ela parece ter funcionado.
Já pensei em perguntar algumas coisas a ela, sobre a vida dela e tal, mas Bernadete parece ser tão deslocada da realidade, andando por aí resmungando, reclamando de todo mundo, inventando teorias e absurdos, que prefiro apelar para a fofoca, digo, perguntar aos outros moradores. Mas, pensando bem, a realidade e a ficção sempre se misturam. Se não somos nós que inventamos verdades sobre nós mesmos, são os outros que criam.
Ouvi dizer que ela foi professora. Que fez uma cirurgia no cérebro e ficou assim. Que o velho de boina do exército que morava com ela não era marido, e sim ex marido. Que não tem família. Que foi expulsa do prédio que morava anteriormente. Que é uma bruxa que sequestra moradores novatos e os transforma em pombos, para depois dá-los de comer ao demônio que mora no andar inexistente — tá bom, essa última eu inventei agora.
Sempre ignorei os pombos. Não me afetava diretamente, então deixava passar. Era um fato curioso. Uma história engraçada que eu contava aos meus amigos. A velha que criava pombos, mas com um twist bolsonarista.
Ela nos chama de fofos. Eu e meu marido. Mas de fofa ela não tem nada. Um dia reclamava dos maconheiros da praça onde fica alimentando os pombos — uma praça que é ocupada por muita gente em situação de rua, especialmente pessoas pretas e lgbtqia+ — dizendo que fumam maconha e cospem nos pés dela, e por isso ela está cheia de feridas ali. Logo depois, ouvi xingamentos racistas e lgbtqia+fóbicos. Outra vez, a ouvi xingando o zelador do prédio, chamando-o de idiota porque ele estava defendendo a vacina contra a COVID — sim, além de tudo é negacionista.
Ela reclama de tudo: da água, das pessoas da praça, dos moradores do prédio, do síndico, do elevador que não funciona, geralmente gritando muito e xingando todo mundo.
Alguns meses atrás, o velho de boina que morava com ela faleceu. A história que chegou aos meus ouvidos, ressoando por esses corredores antigos, foi que ele pegou uma infecção naquele apartamento durante a recuperação de uma cirurgia. Aí parei de sentir o cheiro forte de desinfetante que às vezes vinha do apartamento dela, e começou a aparecer baratas aqui. A minha conclusão foi que era ele quem limpava o apartamento. Agora, sem ele, está tudo indo ladeira abaixo.
O cheiro está cada vez pior. Falaram que no apartamento ao lado do dela está insuportável. As baratas se espalham pelos apartamentos mais próximos. Já chamaram polícia, vigilância sanitária e polícia ambiental. Mas não podem fazer nada sem uma ordem judicial. O próximo passo é fazer um abaixo assinado entre os condôminos e entrar com uma ação. Enquanto isso, a guerra foi declarada. Já até desligaram os elevadores para evitar que ela subisse com um carregamento de milho.
Vale lembrar que o problema não está exatamente nos pombos. Há pessoas que os criam em casa, mas em condições adequadas de higiene, saúde, espaço e quantidade. Na rua, eles podem transmitir doenças porque estão em superpopulação, que, inclusive, ela fomenta ao alimentá-los frequentemente. Todo dia, várias vezes. Bernadete os cria em situação insalubre, acumulados, enfiados numa sacola de supermercado, doentes, mortos — ela também os leva mortos para casa. Um vizinho nosso disse vê-la chegar no prédio com um pombo sem cabeça.
Sem aguentar mais essa situação, e não poder resolver nada, acabei desabafando no twitter. Não cabe a mim falar sobre o estado da saúde mental dessa mulher, também não sei onde está a família dela, ou se ela está em situação de abandono, então tudo que posso fazer é torcer para que a justiça resolva isso logo. Qualquer atualização, corro para o twitter!
Esse caos todo me fez pensar nas histórias que existem por trás das portas que nos rodeiam. Idosos abandonados, acumuladores, criminosos, vítimas, foragidos, escondidos, solitários. Quantos personagens assim há por aí? Tenho vontade de sair batendo em toda porta fechada que vejo para saber o que há por trás. Como não posso, me contento com o pouco que deixam escapar, com as fofocas partilhas, e, claro, com o que invento na minha cabeça.
E tu, tem alguma história escondida atrás de uma porta fechada?
Uma novidade
Falando em portas, estou desenvolvendo um fotolivro em formato de zine sobre PORTAS! Já tinha feito algumas zines antes, mas todas experimentais, feitas só para mim e para testar o formato, usando colagem, pintura e desenho. Uma delas, inclusive, sobre uma bruxa que vive na praia, acabou virando o conto que vai sair na revista Suprassuma! Agora estou fazendo uma impressa: com fotos de portas antigas de Recife e Olinda, reflito sobre o significado dessas estruturas. Tudo feito por mim: as fotos, a impressão, a diagramação e a encadernação. Ainda estou na etapa de diagramação, espero que dê certo! Se der, vou fazer uma tiragem e disponibilizar para venda :) vem aí!
Seu prédio e a pombeira são um livro (ou quem sabe um quadrinho?) pedindo pra ser escrito. Já quero saber como acaba essa história!
Fiquei presa do início ao fim e só te peço uma coisa: traz atualizações pra cá também!! Curiosíssima!