Uma ideia
Esses dias fiz um post nas minhas redes sociais sobre o termo “noir queer”, que eu venho utilizando para definir meu último lançamento de livro. Muita gente se interessou pelo assunto e, como lá os caracteres e o tempo de vídeo são limitados, achei bom trazer um pouco mais para cá também.
Primeiro preciso falar sobre o noir, que é um subgênero de filme policial. Começou a ser difundido perto do final da segunda guerra, entre os anos 40 e 50, nos Estados Unidos, e derivou-se de livros de suspense da época, influenciado pelo expressionismo alemão e pelo clima desesperançoso pós-guerra. A Grande Depressão (período de recessão econômica no final da década de 20) teve um grande impacto na composição do noir, também, bem como a estética de filmes de terror daqueles anos (como Nosferatu).
Com tanta desgraça acontecendo ao redor, os autores encheram seus filmes de pessimismo e fatalismo, sentimentos onipresentes no noir. Assim, as tramas policiais eram carregadas de dilemas morais, crise existencial, drama, morte, mentira.
O passado (o medo dele) é imperativo: nessas histórias há sempre um passado sombrio evitado, mas que uma hora terá que ser confrontado. Os personagens são perseguidos por esses traumas pregressos, então são pessoas bastante obscuras, assombradas. Amaldiçoadas, até.
A estética do noir é um componente elementar da narrativa. Ela serve para ressaltar todos esses sentimentos, como se fosse um personagem em si. Close-ups intensos e lentos, chiaroscuro (claro/escuro, aquele jogo de luz e sombra que destaca a silhueta das pessoas e os contornos dos objetos em contraste com o fundo), ângulos.




A cena onde sombras de persianas se destacam sobre o rosto do ator enquanto ele olha pela janela foram tão reproduzidas que se tornaram um clichê do gênero.
Aqui, vou falar de uma área que não é a minha e que não tenho muito conhecimento, o cinema, mas: os ângulos também servem para ressaltar todo o drama do noir. Ângulos de baixo aumentam as sombras e alongam as pessoas, ocultando o chão e expondo o teto (claustrofobia, determinismo, enclausuramento, ansiedade); ângulos altos em lugares impossíveis dão a sensação de instabilidade (vertigem, desequilíbrio, o desespero de se estar à beira do precipício).
Por isso tantas paredes, janelas, escadas, sacadas e grades. Há uma ânsia pelo escape. Para fugir daquilo tudo. Cidades grandes, de prédios altos e becos escuros e estreitos são o cenário perfeito para isso tudo.




A névoa, o lixo, o colapso do capitalismo, a tristeza da guerra são pano de fundo para as tramas. Quando pensamos em filmes noir, pensamos em Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco, Londres.



As narrativas mais comuns nesse tipo de filme são histórias de detetives, de assaltos, de gangues. Há sempre uma morte, geralmente assassinatos, e na subtrama se difunde o ciúme, a corrupção, a vingança, a espionagem. Os clichês são bastante reproduzidos, como o clássico personagem de detetive de poucas palavras, o policial valentão, o marido alcoolista e violento, a mulher femme fatale, sempre sedutora e com um cigarro na mão. Alguns diretores utilizaram esses elementos para falar sobre corrupção policial e política, injustiça, problemas sociais e sobre a hipocrisia de uma sociedade decadente.



A maior parte desses filmes, entretanto, está presa a narrativas estadunidenses e europeias, com um olhar imperialista e colonialista. Tudo isso numa perspectiva cisheteronormativa, bastante masculina e misógina.
Outros noir
Com o passar das décadas, o noir foi se modificando e adaptando, passando pelas cores, incorporando novas técnicas e influenciando outros gêneros. Há influência no noir no cinema asiático, na literatura, na animação e em seriados de TV atuais.
O cyberpunk (subgênero da ficção científica), por exemplo, bebeu bastante do noir para compor sua estética.




O noir feito hoje em dia, com filmes e séries de mistério (muitos deles adaptações de livros) que fazem bastante sucesso, é chamado de neo noir.




Ainda assim, com tantos exemplos, até agora não consegui citar nenhum filme queer. Que coisa, né? São poucos representantes e, mesmo com todas as modificações do gênero noir, as narrativas cisheteronormativas imperam até hoje (com histórias sobre relacionamentos entre homem e mulher, dificilmente saindo da discussão sobre violência doméstica). Aliás, os diretores e autores são, em sua grande maioria, homens cis e brancos.
No ar: cuir
Finalmente, o noir queer* subverte o gênero, quebrando esses paradigmas que reforçam o status-quo que vem lá do norte global. Como sempre, queer é contravenção da norma, então os arquétipos do detetive muito masculino e da mulher femme-fatale são apropriados e destruídos. Pessoas LGBTQIA+ assumem o protagonismo.




Foi por conta dessa falta de narrativas que me aproximassem das histórias, e por gostar tanto do gênero, que escrevi minha própria história noir.
O silêncio do mangue é um clássico livro noir: protagonista detetive de poucas palavras, cujo arco envolve confrontar o próprio passado, narrativa fatalista e pessimista, muitas sombras e pessoas espiando pela janela. Exceto que é queer.
O queer no noir trata de vivências queer. De revolução, gritos suprimidos, desejo de vingança. Gays empinando moto e travestis explodindo coquetéis molotov na delegacia. Os personagens são queer, o crime envolve a comunidade queer.
Em O silêncio do mangue, bem longe de Nova York, drag queens caminham pelas ruas escuras e úmidas de uma cidade nordestina cercada por manguezais.
É importante lembrar que não se trata apenas de representatividade. Não é colocar um personagem LGBTQIA+ aqui e ali e chamar de história queer. São pessoas queer assumindo suas próprias narrativas. São os vilões, os mocinhos, os monstros, os salvadores, os algozes, as vítimas. Afinal, queer não é apenas um traço de personalidade, mas algo que perpassa todos os aspectos da nossa vida.
Pedindo licença a Eric Novello para citar o livro dele, Exorcismos, amores e uma dose de blues é um livro que considero essencialmente noir queer. A trama da morte, meu livro publicado pela editora Corvus, também mistura sobrenatural com noir, numa trama queer e policial.
Longe do sobrenatural, queria ter mais exemplos de livros nacionais para citar. O silêncio do mangue é a recomendação que eu tenho para fazer se você quer conhecer mais sobre o noir queer na literatura.
* Também gosto do tempo “noir com glitter”. Uma vez me perguntaram qual era a vibe de O silêncio do mangue e falei assim: é noir, mas não tanto. É noir, mas com glitter.
Até mais! Volto quando a faísca do isqueiro acender um fogo por aqui.
Meu nome é Lucas Santana, sou autore de O silêncio do mangue, A trama da morte, Fruto podre e O parque. Também tenho contos publicados em revistas e antologias que você pode conferir aqui. Se quiser me acompanhar nas redes sociais, estes são meu x/twitter, meu instagram e meu tiktok. Para comentar ou responder esse boletim, basta responder o e-mail normalmente. Beijos!
O silêncio do mangue é maravilhoso! Adorei conhecer mais do teu trabalho
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