Uma ideia
Todo mês eu tenho feito uma postagem lá no instagram com um breve resumo das minhas últimas leituras. Em abril eu li Nós fazemos o mundo, de N. K. Jemisin, e eu disse que faria uma edição do Boletim para falar só sobre esse livro, porque tenho algumas opiniões. Bom, chegou a hora, com um pouquinho de atraso.
Nós fazemos o mundo é o segundo volume da série Grandes Cidades, que começou com o livro Nós somos a cidade. São histórias que falam sobre identidade, cultura, imigração, especulação imobiliária e gentrificação. Temas que gosto muito de debater e de ler sobre. No primeiro livro, descobrimos que as maiores e mais antigas cidades do mundo possuem avatares. Isto é, pessoas comuns que foram incorporadas pelos espíritos de suas respectivas cidades a fim de protegê-las e manter um equilíbrio entre as pessoas e seu contexto urbano.
O livro se passa em Nova Iorque e, diferentemente da maioria das outras cidades (claro), essa possui mais de um avatar, cada um deles representando um bairro. Para mim, essa é a parte mais interessante da história. Os avatares novaiorquinos são representações estereotipadas de seus bairros (Queens, Brooklyn, Manhattan, etc), mas dá para perceber que não são estereótipos vazios, são reais, escritos por uma pessoa que realmente vive e conhece sua cidade. São imigrantes, pessoas pretas, pessoas em situação de rua, pessoas queer, pequenos comerciantes, ou seja, a verdadeira alma da cidade. Assim, para mim, o grande mérito do livro é essa construção de personagens, a diversidade e a representatividade.
Em Nós somos a cidade, uma ameaça invisível e multidimensional ameaça Nova York. Aos poucos, a cidade vai enfraquecendo, perdendo a identidade, os bairros vão ficando todos iguais, as pessoas perdem o senso de pertencimento, os aluguéis vão ficando mais caros e lojas chiques brotam aqui e ali. A autora usou uma premissa fantasiosa (a ameaça lovecraftiana) para falar sobre gentrificação e especulação imobiliária. Isto é o que mais gosto na ficção fantástica: o elemento fantasioso pode ser utilizado pelo autor para falar sobre inúmeros assuntos reais sob diversos ângulos. E, quando criamos novas maneiras de falar sobre determinado tema, colocamos um novo olhar sobre aquela questão, levamos o diálogo para novas pessoas, possibilitamos um viés de entendimento diferente para aquilo.
Em A monstra, por exemplo, meu conto que está na antologia LGBTerror, da editora Diário Macabro, eu uso a figura do monstro de Frankenstein para falar sobre identidade trans. Já em Bruxa de areia, conto meu que saiu na segunda edição da revista Suprassuma, uma bruxa que se fortalece com a luz do sol está enfraquecida por conta dos arranha-céus na orla de Boa Viagem que jogam sombra na areia da praia onde mora.
No segundo livro da série Grandes Cidades, Nós fazemos o mundo, é a candidatura de um político de extrema direita à prefeitura de Nova Iorque que ameaça a cidade. Os discursos de ódio, a violência contra imigrantes e o nacionalismo dão forças à ameaça multidimensional, que sempre está à espreita para devorar tudo. A diversidade assusta a direita porque ela dá poder ao povo. Uma cidade plural, cheia de cultura, vozes e origens é uma cidade poderosa. Assim, uma forma de controlar as pessoas é tornando-as iguais, sem pensamento crítico e sem senso de identidade. Já parou para pensar que o movimento minimalista no design e na arquitetura é uma forma de controle social? Assim como aquelas páginas de arte que pregam que apenas pinturas renascentistas e estátuas gregas são “arte pura e verdadeira” (não preciso nem mencionar como o padrão de beleza atual se assemelha bastante aos homens esculpidos pelos gregos, né?). N. K. Jemisin mostra no livro dela como a coletividade é uma importante arma para combater a extrema direita e o conservadorismo.
Li esses livros pensando na cidade onde vivo. Especialmente no meu bairro, no centro de Recife. A Boa Vista é um bairro antigo cheio de histórias, de personagens, de sobrados, de botecos, museus e antiquários. Um bairro com muitos idosos, que vivem aqui desde sempre, que conhecem todos os vizinhos, com muitos ambulantes e comércio pequeno, com uma população LGBTQIA+ bem grande também, por conta dos bares, boates e saunas voltados para a comunidade.
Se a Boa Vista tivesse um avatar, ele estaria na UTI agora. O bairro também tem sua própria ameaça e vemos, aos poucos, ele perder sua identidade. Casarões históricos sendo demolidos para construírem estacionamento ou prédios enormes com fachada de vidro, muro alto e guarita que nada se comunicam com o entorno. Quem quiser ver prédio histórico, que vá para a Europa! De repente, lojas caras surgem e a prefeitura resolve requalificar ruas e praças (que até então estavam abandonadas), expulsando pessoas em situação de rua, sem dá-las onde morar, enquanto centenas de prédios continuam vazios e abandonados (esperando a especulação imobiliária tomá-los) e outros passam por retrofit para virarem airbnb (continuando, portanto, a serem vazios). Enquanto isso, os trabalhadores que dão vida a esses locais são obrigados a morarem bem longe, perdendo tempo, qualidade de vida e sufocando a rede de transporte público que já é precária.
São problemas que vemos em todas as cidades. Grandes ou pequenas. No capitalismo, o lucro é a máxima. Não planejamos cidades pensando nas pessoas. Construções de prédios priorizam o lucro da construtora, não o bem-estar de quem vai morar lá dentro, ou de quem mora ao redor. Obras de infraestrutura priorizam carro. Reformas de praças priorizam ano eleitoral.
O maior problema da série Grandes Cidades é achar que Nova Iorque é uma cidade única. Apesar do recorte social e racial, a autora é norte-americana. E é claro que ela acha o país dela o melhor do mundo. Que ela acha que NY é o berço cultural do planeta. Nos livros dela também conhecemos avatares de outros continentes, mas são todos pequenos, bem limitados, e suas cidades só possuem um avatar. Ao contrário daquela que é a cidade mais legal, mais badalada e mais diversificada.
É difícil fugir do imperialismo estadunidense. Os EUA, com seus arranha-céus, rodovias e estacionamentos imensos, são um símbolo de urbanização. A maioria dos livros de fantasia urbana saem de lá. Suas cidades são tão romantizadas e difundidas na cultura que quando pensamos em grandes centros urbanos, é difícil não lembrar das imagens que vemos nos filmes e nos livros. Cidades estadunidenses, europeias, japonesas, os grandes impérios.
Gosto muito de Fantasia urbana, esse gênero literário onde a magia se esconde nas esquinas e bueiros da cidade. Infelizmente, temos poucos exemplos de publicações que se passam no nosso país. Dois livros que eu amo são Exorcismos, amores e uma dose de blues, de Eric Novello, e Porém bruxa, de Carol Chiovatto, que já são dois clássicos da Fantasia urbana nacional e inspirações muito grandes para mim. Entretanto, as duas se passam em São Paulo. Onde estão as nossas outras cidades, tão ricas e importantes quanto? Eu sei que há outros exemplos, mas todos livros de publicação independente sem muita visibilidade. Vamos lá, editoras! Fantasia urbana brasileira é a melhor que há.
Porque eu gosto do nosso barulho. Gosto da sujeira e do caos de uma cidade real, bem latina, bem a gente. Da história nas paredes descascadas. Da gritaria e da confusão. Acho que me sinto mais vivo assim. Dessa forma, sinto que a cidade é nossa. Que a ocupamos e a moldamos do nosso modo. A cidade se adequa às nossas necessidades, e não o contrário. Assim, somos a cidade.
Quando pensamos no crescimento das nossas cidades, mimetizamos as de lá de cima: grandes prédios espelhados, ruas limpas, tudo muito minimalista (poucas placas, pouca decoração, pouca gente, pouca cor, pouca diversidade). Ruas impessoais, pessoas caminhando caladas, sem vendedores ambulantes, paredes recém pintadas, jardins aparados, tudo higienizado. Uma cidade fria e silenciosa. Disseram-nos que isso era o ideal de vida.
Quando andei por cidades europeias, tive uma sensação de que as pessoas estavam sob amarras. Controladas pelo império. Uma vida sem graça, tranquila e falsa.
Nas cidades silenciosas, a rua não nos pertence. Caminhe rápido e devagar, saia do trabalho e corra para a segurança da sua casa. Na cidade silenciosa, as praças são dentro dos condomínios. Você nem precisa sair de casa. Na cidade silenciosa, você compra tudo na internet. Pede para entregarem tudo na sua porta. A empregada passeia com o cachorro. Se quiser visitar um parque — que agora está bem limpo, vigiado, e sem aquela gente que não vive como você — para tirar fotos, nem precisa pisar na calçada. O motorista te pega no estacionamento e te leva de volta. Na Europa, eles têm lá suas cidades perfeitas, com planejamentos urbanos excelentes. Mas a que custo? À nossa custa.
A cidade silenciosa é uma cidade morta. Uma cidade que não existe.
Pois vamos fazer barulho.
Um mistério
Quem me acompanha nas redes sociais talvez tenha visto uma movimentação estranha por lá. Meu romance policial, Terra alagada, sumiu misteriosamente da Amazon. Fiz uma série de posts e vídeos falando sobre isso, procurando o maldito livro, especulando. O livro ainda não apareceu, mas há várias apostas sobre onde ele pode estar. Eu sigo na expectativa. Mas acho que estamos muito perto de descobrir a verdade 🤫🔎
Assim que tiver uma novidade, corro para enviar um texto por aqui. Fiquem atentes.
adorei as recomendações de fantasia urbana de autores brasileiros! esse é um gênero que preciso conhecer mais, e ainda melhor se puder fazer isso lendo a nossa gente!