Uma ideia
Então, esses dias eu vi uma trend no twitter/x em que as pessoas compartilhavam suas bandeiras (as da sigla LGBTQIAPN+). Fiquei tentado a mostrar as minhas, mas pensei bem e rasguei as minhas
bandeiras. Queimei. Coloquei numa garrafa com gasolina e fiz um coquetel molotov com elas.
De forma alguma eu me oponho ao orgulho de hastear as nossas belíssimas bandeiras coloridas, mas eu queria falar sobre rótulos. E o texto de hoje vai ser sobre isso. Afinal, hoje é o dia do orgulho LGBTQIAPN+, data que marca o dia da Revolta de Stonewall, uma manifestação contracultural em Nova Iorque, na década de 60, onde pessoas trans e drag queens protestaram contra as batidas policiais que as agrediam e as impediam de existir nas ruas e estabelecimentos da cidade. Na minha opinião, essa data deveria se chamar dia de luta
, e não de orgulho
, mas isso não vem ao caso agora.
Minhas bandeiras
Cresci sendo uma criança viada. Um adolescente pequeno, afeminado e delicado. Quando eu entendi que me atraía por homens, acabei condicionando minha mente que eu era gay. Afinal, era a única opção que parecia viável. Na época, a sigla era GLS, e eu jamais conseguiria cogitar que eu poderia ser outra coisa. Eu gostava de homens, eu era homem, então só podia ser gay. Era isso o que diziam, não? Também diziam que era errado, que era perigoso, que era triste, que eu terminaria sozinho, deprimido e morto. Isso também condicionou minha mente, isso também me rotulou
.
A gente que é LGBTQIAPN+ aprende a viver assim: no limite, num estado constante de atenção, cada célula do corpo em alerta, condicionando a mente, o corpo, os arredores. Esses dias, Ikaro Kadoshi falou recentemente que ser uma criança/adolescente queer é viver em estado de terror, de guerra, o tempo inteiro, e como isso provoca um estresse pós-traumático que se arrasta pela vida adulta. Sei bem como é isso.
Viver escondido, solitário, com medo de ser descoberto e com uma sensação constante de isolamento, pois todos estão contra você e você não tem ninguém com quem conversar, tem um impacto muito grande no desenvolvimento de um adolescente. São traumas que alteram a química do cérebro e que me acompanham até hoje, refletindo-se na minha insegurança, na minha baixa autoestima, na síndrome do impostor, na necessidade de aprovação alheia, na depressão e na ansiedade. Na reatividade à algumas situações, medo de ser pego. Bandeiras são difíceis de apagar.
Quando finalmente entendi o que eu era, segui dentro do meu rótulo, reforçando tudo que me tornava gay (assim como homens heterossexuais fazem de tudo para reforçar a masculinidade), usando isso como uma armadura, uma proteção, ser gay era meu espaço de segurança, já que eu não precisava mais fingir ser outra coisa. Assim, fiquei recluso dentro daquele espaço que me definia. Na minha cabeça (e na dos outros) eu só poderia me atrair por homens. E se eu me atraísse por mulheres eu estaria lascado e condenado à solidão: num mundo tão heterocis-normativo, que mulher se atrairia por uma bicha baixinha e afeminada? Pois bem, no rótulo em que fui encaixado, era preciso rejeitar as mulheres, também.
Autodestruição
À medida que explorava minha sexualidade, descobri que os rótulos ficavam cada vez mais restritos. Fui levado a uma condição de passividade e submissão. Com uma figura tão atrelada ao feminino, é claro que eu teria que ser passivo. Então minha “busca” se restringia a homens maiores, mais fortes, mais velhos, ativos. Há pouco espaço para exploração dentro dos rótulos.
Era início dos anos 2000 e não existia redes sociais, não existia representatividade em filmes, séries e livros, eu não tinha amigos como eu, informações eram difíceis de se encontrar. Tudo isso criava um ambiente perigoso, propício a situações de abuso. Um menor de idade sem informações e sem uma rede de amparo e de segurança facilmente acreditaria no homem de quarenta anos que o prometia o mundo no bate-papo da UOL e o levava para motéis escondido atrás do banco do carro.
Não demorou para isso evoluir para comportamentos autodestrutivos. A baixa autoestima, a solidão e essa necessidade de aprovação (que sempre vinha de corpos masculinos maduros) me levava para relacionamentos tóxicos. A heteronormatividade infiltrou meu corpo até nisso: eu achava que meus parceiros tinham que ser homens maiores, másculos, violentos, abusivos. Sujeitei-me a situações perigosas, degradantes e humilhantes porque eu achava que era isso que me pertencia. Que coisa, né?
Demorei muito para processar esse passado. Demorei para me perdoar, não guardar ressentimentos, não me culpar. Principalmente, para ter coragem de falar sobre isso. Foram anos de luta.
A sociedade é doentia, vivemos num CIStema que nos aprisiona em rótulos e máscaras. Afinal, gênero é construção social e todas as suas performances nos são impostas para que sejamos controlados. Fui levado, sem escolha, a um caminho tortuoso que foi construído justamente para nos torturar. Que bom que hoje em dia eu tenho uma plataforma para falar sobre isso. Que muitas outras pessoas falam sobre isso. Assim, lemos, aprendemos, ficamos atentos. Podemos olhar para um próximo e oferecer ajuda. Um conselho. Uma palavrinha sequer. Tudo o que eu precisava no passado e não tinha ninguém para me oferecer.
E então, o que eu sou?
Hoje em dia, depois de tantos anos, depois de muita terapia, entendi que só há um jeito de me livrar dessas amarras do passado. Desses rótulos que me levaram a tantos lugares ruins. Eu preciso esquecer quem eu sou. Esquecer tudo aquilo que eu acreditei por tantos anos que me definia. Rejeitar a minha bandeira. Tocar fogo no meu eu do passado.
Agora, recuso tudo o que já me definiu: gay, homem, cis. Mas se eu não sou tudo aquilo que eu acreditei que era, muito menos tudo aquilo que me fizeram acreditar que eu era, o que eu sou? Queer? Apesar de gostar da palavra, que significa estranho em inglês, no meu contexto brasileiro ela não é muito prática e não significa muita coisa. É só uma palavra em inglês. Kuir, Cuir
? Bicha não-binária
? Sobre termos inadequados às nossas vivências, em seu livro de ensaios, “A vulva é uma ferida aberta”, Gloria Anzaldúa escreveu:
Para mim, o termo lésbica es un problema. Como chicana, mestiza de classe operária — amálgama de culturas y de lenguas — uma mulher que ama mulheres, ‘lésbica’ é uma palavra cerebral, branca e classe média, representando uma cultura dominante inglês-exclusiva, derivada da palavra grega lesbos. Eu penso em lésbicas como mulheres predominantemente brancas e classe média e um segmento de mulheres de cor que adquiriram o termo por osmose muito como chicanas e latinas assimilaram a palavra ‘hispânicas’. Quando uma ‘lésbica’ me nomeia o mesmo que ela, ela me subsome sob sua categoria. Eu sou de seu grupo mas não como uma igual, não como uma pessoa inteira — minha cor apagada, minha classe ignorada. Soy una puta mala, uma frase cunhada por Ariban, uma tejana tortillera. ‘Lésbica’ não nomeia nada em minha terra natal. Diferentemente da palavra ‘queer’, ‘lésbica’ chegou tarde em algumas de nossas vidas. Me chame de las otras. Me chame loquita, jotita, marimacha, pajuelona, lambiscona, culera — essas são palavras que cresci ouvindo [..] Quero poder escolher com o que me nomear […] Queer é usada como um falso guarda-chuva unificador sob o qual “queers” de todas as raças, etnias e classes são enfiadas. Às vezes precisamos desse guarda-chuva para solidificar nossas trincheiras contra intrusos. Mas mesmo quando buscamos abrigo sobre ele nós não podemos esquecer que ele homogeniza, apaga nossas diferenças.
Mas como eu quero me nomear? Não tenho resposta para isso agora. Nem sei se vou ter. E também não me importo. Enquanto me redescubro, a última coisa que eu quero é me rotular novamente.
Por isso, rejeito qualquer binariedade. E também não busco mais rotular minha sexualidade. No momento, apesar de reconhecer a importância da autoafirmação, eu nego qualquer bandeira, exceto a mais importante pra mim: a bandeira trans, que é a desconfiguração de todo esse CIStema.
Uma revelação
Já que estamos falando de orgulho
, de luta
, de bandeiras queimadas
e da rejeição ao passado
, a pré-venda do meu novo livro, O silêncio do mangue, está em pré-venda (com preço promocional) pela Editora Naci!
A descoberta do corpo de uma famosa drag queen nas águas turvas do mangue coloca Tibério Ferreira, um investigador marcado por eventos traumáticos, no meio de um caso que ameaça colapsar as estruturas sociais da cidade e de sua sanidade mental. Com novos cadáveres emergindo, o grupo Gayrrilha se levanta com a promessa de vingar os anos de negligência e violência sofridos pela comunidade LGBTQIAPN+, pressionando Tibério e sua equipe para resolver os crimes, antes que a cidade queime em chamas. Porém, conforme adentram o mangue, e segredos ocultos são revelados pela lama, o caso se mostra mais complexo, caótico e violento. Agora, todos os envolvidos correm o risco de serem os próximos corpos silenciados pelo mangue.
Uma versão dessa história foi publicada por mim alguns anos atrás, de forma independente. Após uma longa jornada, ela conquistou o coração de muitas pessoas e agora tem uma nova casa. Então, Terra alagada agora é O silêncio do mangue
. Além do título diferente, a história está completamente remodelada, com uma nova edição, nova revisão, novo tamanho e, é claro, um projeto gráfico incrível e impecável. Ah, sim, o livro é físico e poderá ser encontrado em livrarias!!!! (Fingindo não estar surtando e com muito orgulho
dessa minha conquista).
Para finalizar (e para celebrar essas conquistas), queria pedir para vocês todes fazerem muito barulho! Comentem nos posts, compartilhem, enviem para amigues, comprem! Vamos fazer essa pré-venda voar! Agradeço demais pela ajuda para levar minhas palavras para o país inteiro!
E espero encontrar vocês em breve, com o livro para autografar!
Até mais! Volto quando a faísca do isqueiro acender um fogo por aqui.
Meu nome é Lucas Santana, sou autore de A trama da morte, Fruto podre, Terra alagada O silêncio do mangue e O parque. Também tenho contos publicados em revistas e antologias que você pode conferir aqui. Se quiser me acompanhar nas redes sociais, estes são meu x/twitter, meu instagram e meu tiktok. Para comentar ou responder esse boletim, basta responder o e-mail normalmente. Beijos!
Parabéns pela publicação, Lucas!