E então, uma cidade assombrada
Nota: qualquer erro de digitação/ortografia foi colocado calculadamente para te assombrar.

Uma ideia
Recife é a cidade do mal-assombro. Há dezenas de histórias, lendas e causos sobre aparições macabras e seres medonhos circundando por essa cidade velha. A perna cabeluda, uma das mais famosas, é uma perna que anda (ou pula) sozinha, sem estar ligada a um corpo, pelas madrugadas do Recife antigo, atacando a chutes e rasteiras os desavisados que passam pelas pontes desertas ou pelas margens do Capibaribe. A Cruz do Patrão é uma cruz antiga localizada na área portuária do centro da cidade, erguida antes da época da invasão holandesa, que dizem ser assombrada pelos espíritos das pessoas escravizadas que foram enterradas ali. Como se não bastasse, há pontos da cidade nomeados por suas respectivas lendas de assombração: a Praça Chora Menino, no bairro da Boa Vista, por exemplo, é chamada assim porque escutavam o choro de crianças no local. Depois, descobriram que lá estavam enterradas dezenas de corpos de crianças mortas numa revolta de soldados no século XIX. Uma mulher, morta pelo marido na época da colonização, voltou dos mortos e até hoje encanta homens que passam pela beira do Capibaribe, no bairro do Pina, atraindo-os e matando-os no manguezal. O local das suas aparições é chamado Avenida Encanta-moça. Tem tantas lendas que existe até um site para catalogá-las. Tem também um filme e o famoso livro de Gilberto Freyre, Assombrações do Recife velho, de 1955.

Conhecendo as lendas ou não, o centro de Recife parece um cenário de filme de terror. O rio Capibaribe que corta a cidade, correndo lento e grosso, os vestígios de manguezais com cheiro de podridão, as pontes cheias de sombras debaixo delas. No entorno do rio, centenas de casarões abandonados, sobrados ocos, igrejas centenárias vazias, becos escuros, raízes de árvores antigas se espalhando pelas calçadas e subindo por ruínas. Tudo parece abandonado, assombrado, prestes a te engolir numa noite escura e silenciosa.
Um causo
Vou contar uma história de quando eu me mudei para o centro de Recife, para um prédio art-decô de 1944. Eu tinha acabado de chegar, era meu primeiro dia ali como morador. Eu e meu marido estávamos entrando no elevador para subir até o nosso andar quando uma mão segurou a porta de madeira que fica por fora. A mão enrugada era de uma idosa encurvada, de óculos escuros e sobreposições de roupa com estampa animal. Ela não queria entrar no elevador, mas nos alertar.
— Vocês acabaram de se mudar? — Ela perguntou com a voz rouca e urgente.
— Sim — respondemos.
— Tomem cuidado com esse elevador. Já morreram cinco pessoas nele. Inclusive uma mulher grávida com bebê de colo, que caiu do último andar e foi perfurada pelas ferragens no fundo do poço.
Ela falou isso e soltou a porta de fora. Nos entreolhamos enquanto o elevador fechava e subia até o nosso andar.

Foi nesse contexto — morando num prédio assombrado por uma grávida que morreu no poço do elevador e no centro da cidade mais mal assombrada do Brasil — que comecei a sentir vontade de escrever Horror. Sempre gostei de ler, mas nunca tinha me aventurado a criar. Cercado por tantas inspirações, foi quase natural.
Mas, é claro, que por trás (ou seria por cima?) de todas essas lendas de seres e locais místicos, macabros e imaginários, há incontáveis horrores reais. Horrores do passado, arraigados na memória e no chão sujo de sangue, de chacinas, genocídios, massacres, invasões, guerras, violências absurdas que se sobrepuseram ao longo dos anos, enterrados na história da cidade como camadas de solo de uma escavação arqueológica.
Horrores que se perpetuam pelas décadas, como um espírito encangado numa casa antiga, assombrando todos os moradores que passam por ali, violências do nosso cotidiano que são verdadeiras histórias de Horror. Travestis que são queimadas na madrugada, patroa de condomínio de luxo que deixa o filho da empregada doméstica cair do nono andar, notícias de feminicídio que eclodem todos os dias. A lenda da Menina Sem Nome, que supostamente assombra — mas também realiza desejos de devotos, como cura de doenças e realizações materiais — no Cemitério de Santo Amaro, em Recife, vem de uma história real. Uma criança, aparentando ter entre oito e dez anos, foi encontrada morta na praia do Pina em 1970. Estava com o rosto afundado na areia, com as suas mãos amarradas às costas e marcas de facadas, estrangulamento e estupro. Sem nunca ter sido identificada, foi enterrada como indigente no Cemitério de Santo Amaro. O caso se tornou um fenômeno de devoção religiosa e até hoje o túmulo da Menina Sem Nome é visitado por devotos, que levam ex-votos, bonecas e vestidos e bombons para a menina enterrada. Não sei vocês, mas essa história me dá arrepios.

A cidade é presa a um ciclo de horror perpétuo: ódio, assassinato, vingança, intolerância. Especulação imobiliária que destrói o que resta do meio ambiente e expulsa dos centros urbanos populações vulneráveis, o descaso com a população periférica, a quantidade cada vez maior de pessoas em situação de rua, tentando sobreviver no ambiente insalubre rodeado por prédios vazios e abandonados, as enchentes que trazem cada vez mais mortos. Que horror é viver em meio a tudo isso…

Ao mesmo tempo em que a gente pode se perguntar como é que se pode escrever Horror ficcional num país tomado por tantos horrores reais, escrever é uma forma de lidar com e falar sobre isso. Uma forma de processar os nossos medos, nossas angústias, nossas vergonhas. Pra quem entende de inglês, recomendo esse artigo de Dante Luiz, “Horror num país que não tem medo da morte”.


Que horror!
Amo filmes e livros de terror. Entretanto, há muitos anos pouco me assusta — o que faz perder a graça da coisa toda, né? Afinal, consumo isso para ficar impactado, horrorizado, aterrorizado. Mas o que tem de assustador numa família de gente branca e rica se mudando para uma mansão assombrada por um fantasma nos EUA? Eles gritam aterrorizados com o lustre caríssimo caindo sobre o assoalho encerado e com o fantasma que deixa pegadas de lama sobre o carpete novo. Eu, fico com cara de paisagem. Essa realidade não poderia ser mais distante da nossa. Lá em cima eles tem medo de fantasmas em suas mansões e castelos de pedra. Aqui, a gente tem medo de fantasmas que andam pelas ruas. De assassinos que caminham livres por aí, sem precisar esconder o rosto com máscaras.
“Narcisa sempre dizia deve-se ter mais medo dos vivos que dos mortos, mas não acreditávamos nela porque, em todos os filmes de terror, quem metia medo eram os mortos, os zumbis, os possuídos. Mercedes morria de medo dos demônios e eu, dos vampiros. […] Durante o dia tudo bem, éramos corajosas, mas à noite pedíamos a Narcisa que subisse para nos acompanhar. Papai não gostava que Narcisa — ele a chamava a doméstica — dormisse no nosso quarto, mas era inevitável: dizíamos que, se ela não viesse, nós é que desceríamos para dormir no quarto da doméstica. Isso, por exemplo, lhe dava medo. Mais que o demônio e os vampiros. E então Narcisa, que tinha uns catorze anos, fingindo que protestava, que não queria dormir conosco, dizia isto, que se deve ter mais medo dos vivos que dos mortos. E achávamos uma estupidez, pois como você pode ter mais medo, por exemplo, de Narcisa do que de Reagan, a menina de O exorcista; ou do seu Pepe, o jardineiro, do que de Salem ou de Demian, o filho do diabo; ou do papai do que do Lobisomem? Absurdo.”
Trechos do conto “Monstros”, da escritora equatoriana María Fernanda Ampuero.
A gente tem medo dos vivos que andam pelas ruas. Dos fantasmas do passado. Temos medo das memórias da ditadura, da tortura, de corpos mortos não identificados boiando pelo rio. Temos medo das memórias da colonização, da escravidão, do extermínio, do imperialismo. Temos medo de sermos perseguido à noite, numa rua deserta, por uma sombra. Medo de atravessar sozinhos uma ponte, pois sabe lá o que se esconde debaixo dela. Temos medo de pessoas velhas que se arrastam curvadas tropeçando por calçadas esburacadas e se isolam sozinhas em sobrados caindo aos pedaços, escuros e cheios de rato. Temos medo de marquises sombrias de prédios antigos, que a qualquer momento podem despencar. De crianças que cheiram cola em praças cobertas por merda de pombo e de gente. Temos medo de sermos jogados contra a parede ou dentro de uma mala por policiais truculentos. Temos medo das eleições. Temos medo de pneus que queimam em rodovias e de tiros de borracha que arrancam olhos. De homens numa moto. Temos medo de deslizamentos e de enchentes que carregam esgoto e corpos e ratos afogados para dentro das casas. Temos medo de um barulho suspeito no quintal da nossa casa às três da madrugada. Temos medo de gritos e risadas e sinos e latidos ecoando pela noite. De umidade, de escuro, de musgo, de lodo, de infiltração. Medo de fuligem, de mijo, de canais entupidos de esgoto. De adultos. De janelas quebradas, portões roubados, entradas cimentadas, entulho, morcegos, raízes de ficus, mangue, pontes, rio, maré que sobre e desce, estátuas sem rosto, igrejas vazias, prédios históricos derrubados na calada da noite, prédios vazios, prédios ocupados sem energia elétrica, de ricos, de palavras estranhas escritas no chão com pedaço de gesso caído dos prédios, de pastores, de coronéis, de ser abordado na rua por um estranho com bafo de podridão. De ser roubado, de ser morto, de ser humilhado, de ser sequestrado, de perder o celular, o emprego, a dignidade, de ser esquecido e encontrado morto na praia, enterrado na areia, com as mãos amarradas, sem nome.
E tu, tem medo de quê? Que histórias de horror assombram a tua cidade e a tua memória?
Uma dica
Já que falei tanto de Recife, a dica de hoje é para recifenses (ou quem mais estiver na cidade). O passeio de barco pelo Capibaribe é uma das coisas mais legais a se fazer por aqui, com roteiros que vão desde conhecer pontes antigas a visitar o Recife Antigo e os locais de assombração. O preço varia de acordo com a quantidade de pessoas, trajeto e duração, mas geralmente é em torno de 50 reais por pessoa. Também dá pra reservar o barco inteiro, negociando o valor, e dividir com amigos para passar uma tarde dando um rolê no rio que corta a cidade (alguns barcos tem equipamento de som e cooler para guardar bebidas). Já fui várias vezes e recomendo demais. Os barcos saem do píer do Jardim do Baobá, nas Graças, é só chegar lá e falar com algum dos barqueiros.
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Até daqui a quinze dias! Ou quando a faísca do isqueiro acender um fogo.
Meu nome é Lucas Santana (ou Luke, agora que estamos íntimos), sou autor de
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