Um capítulo
Essa edição do Boletim é especial.
Hoje começa oficialmente a pré-venda de A trama da morte, minha novela de fantasia urbana, pela editora Corvus no Catarse nesse link! A pré-venda é para custear uma edição física de tiragem limitada e exclusiva. Os exemplares serão numerados, com brindes, e não haverá uma nova reimpressão, tornando a edição única e especial (ou seja, essa é a única oportunidade de adquirir o livro físico). A versão digital de A trama da morte pode ser reservada aqui e o conto bônus, Fruto podre, uma história de terror que já foi traduzida para o inglês por H. Pueyo e publicada pela The Dark Magazine, será lançado após a campanha!
E, como prometido, segue abaixo em primeira mão o capítulo inicial do livro. Espero que gostem :) Boa leitura e, caso gostem (e queiram, né), não se esqueçam de comentar bastante nas redes sociais. Você podem reservar o livro aqui e já podem marcar a leitura no skoob!
A trama da morte
Lucas Santana
I
— Esse fi de uma rapariga me paga — murmurou Jandira, passando debaixo de um poste de luz amarelada na Rua da Aurora.
Àquela hora não havia mais ninguém nas ruas do centro de Recife, com suas marquises cheias de infiltração e janelas fechadas nos sobrados. Ninguém vivo, pelo menos.
O vento soprou gelado nas costas de Jandira, vindo do que sobrou do leito grosso do Capibaribe, as margens do mangue engolidas pela cidade. Uma árvore rangeu, como se tentasse descravar do solo suas raízes, e uma rasga-mortalha passou voando, seu pio rasgando o tecido que separava o plano espiritual.
— Ah, não — sussurrou Jandira, arrepiada, vendo mais uma vez a sombra que a perseguia. Apressou os passos, a canela queimando, o barulho dos saltos ressoando a intensidade de sua urgência de chegar em casa. Talvez na próxima vez devesse levar tênis confortáveis na bolsa, por via das dúvidas.
Algo a acompanhava havia exatamente treze minutos. Em toda esquina ela via, com o canto do olho, uma sombra parada no meio da rua, observando-a andar apressada. Desaparecia logo depois de sua passagem, reaparecendo no cruzamento seguinte. Três quarteirões ainda a separavam de seu prédio e ela nem se perguntava mais se aquela alma ia parar de mistério e comunicar logo suas aflições, pois naquele estado de cansaço e leve apreensão Jandira só queria chegar logo em casa, tirar a roupa, a peruca, limpar a maquiagem, tomar um banho frio e dormir até o calor do dia a acordar.
Performando como drag queen nas noites da cidade, estava acostumada a voltar para casa de madrugada. Voltava sozinha porque seus anos de experiência lhe ensinaram a não levar ninguém para casa depois de uma noite de trabalho, nem amigas bêbadas, nem muito menos desconhecidos, ainda mais quando precisava descansar para voltar a trabalhar no dia seguinte; e geralmente o fazia de bicicleta, porque não queria ser mais uma trabalhadora que gastava com transporte até o serviço o pouco que ganhava.
Para se proteger da violência da cidade, que poderia se abater contra uma pessoa como ela, estava armada com um canivete que não saía de sua mão; já contra os espíritos que caminhavam à noite no centro da cidade não havia muito o que fazer. Não que houvesse espíritos maus ou bons, pois no plano espiritual de lá não existia esse maniqueísmo das narrativas de cá, mas o que os prendia ali eram mal-entendidos e afazeres não resolvidos, amarrados nas almas por fios invisíveis que atravessavam os planos astrais, e esses espíritos velhos, cansados, confusos e sem paciência podiam ser perigosos. Principalmente para quem podia vê-los e senti-los, o que era o caso de Jandira. Contra isso, ela só tinha o relógio. E a tática de evitar olhá-los diretamente nos olhos. Isso é, quando eles tinham olhos.
Às três da manhã em ponto, a malha que separava os vivos dos mortos se abria e os espíritos saíam sabe-se lá de onde para vagar no lado de cá, nas ruas da cidade, a esmo ou à procura de alguém para ouvir seus lamentos, desaparecendo no primeiro raiar do sol, quando voltavam para o outro lado. A drag queen sempre saía da boate onde trabalhava às duas e quarenta e cinco, no máximo; o que lhe garantia os quinze minutos para pedalar até sua casa antes da hora que os do lado de lá passavam para o lado de cá.
Era na boate onde se sentia mais segura. Cercada por tanta vida, esquecia-se dos mortos. Dançando, colocando as fofocas em dia, gritando para ser ouvida em meio à música estridente que ameaçava estourar os tímpanos, dançando um brega antigo coladinha em alguém, era difícil pensar no mundo do além, separado dali apenas por um tecido espiritual que ninguém via. Mesmo se aparecesse um espírito ali, seria impossível distingui-lo dos vivos sob aquelas luzes estroboscópicas, refletidas na fumaça do gelo seco que preenchia o lugar. A fumaça, sua mãe dizia, misturava e confundia os planos, e, sendo assim, Jandira escolhia a ignorância de não saber que estava na presença de uma pessoa morta.
Mas naquele dia, justo naquele dia, aquele filho de uma rapariga, o dono da boate, seu patrão, a fizera se atrasar, deixando aberto o portão do beco detrás do estabelecimento, onde Jandira guardava a bicicleta, que carinhosamente chamava de Joelma. Na hora de ir embora, constatou o pior: os pneus de Joelma estavam furados. Arretada e sem tempo para resolver aquilo, ou mesmo para questionar quem e por que caralhos furariam os pneus de sua bicicleta, decidiu voltar logo para casa, deixando para resolver aquilo no outro dia, pois já estava atrasada. Com isso em mente, atravessou a ruma de gente que bebia e fumava na frente da boate e foi andando ligeiro pelas ruas vazias que a separavam de sua cama. Naquele momento, porém, um espírito misterioso a perseguia. Nada normal.
Aliviou-se um pouco quando avistou seu prédio, na Rua da Aurora. Perto da entrada um bando de gabirus revirava um monte de lixo. Bateu o pé para espantá-los e os animais se esconderam num bueiro. Agora, sim. Quem caralha jogava lixo fora depois da hora do caminhão de coleta? Gente imunda. Mal podia esperar para estar no conforto e segurança de seu lar.
Antes de sair de casa, enquanto se montava, havia feito o encanto de proteção que sua mãe lhe ensinara muitos anos atrás — e um dos únicos de que se lembrava — para manter os espíritos afastados de sua residência, o qual dava nome ao seu alter ego artístico: Jandira Pavio-Curto.
O primeiro nome era uma homenagem à sua falecida mãe, uma outrora conhecida costureira de almas. Pavio-curto, embora oficialmente dissesse ser devido à sua personalidade temperamental e de pouca paciência, pois ela era uma daquelas pessoas sempre avexadas, era também um lembrete do encantamento que fazia sempre ao sair à noite, a fim de os espíritos não perturbarem seu lar, pois, se soubessem que ali morava uma pessoa que podia vê-los, jamais a deixariam em paz.
Enquanto se montava de drag, acendia uma vela e a deixava queimar, recitando as palavras do encantamento repetidas da mãe. Devia acabar de se arrumar e de recitar os feitiços antes de a vela queimar inteira. Quando o pavio, feito de uma linha enfeitiçada, estivesse curto, ela deveria apagar a chama e sair de casa. O cheiro e a fumaça da vela queimada permaneceriam ali, no apartamento, até Jandira voltar; o cheiro afastando as almas penadas, e a fumaça embaçando a trama da vida.
Assim que alcançou o edifício ela sentiu uma coisa ruim na boca do estômago. Antes mesmo de chegar à entrada, viu que o portão já estava aberto, pois a luz do interior se projetava livremente para a calçada escura, sem encontrar no caminho o obstáculo formado pela grade do portão. Olhou para trás: não havia nada.
A primeira coisa que viu ao entrar foi uma mão. Decepada, ensanguentada, sobre o primeiro batente da escada. Depois, a grande agulha que espetava algo naquela mão. Pensou em voltar para a rua, sair gritando, mas então se lembrou do espírito sinistro que a perseguia. Nem fudendo. Saltou horrorizada sobre o batente e então, ao ver a cabeça do porteiro sobre a cadeira de plástico em que ele sempre ficava sentado, curiando o movimento da rua, compreendeu que as coisas espetadas na mão decepada se tratava de dois olhos. No lugar deles, possuía duas órbitas vazias. O resto do corpo estava despedaçado ao redor da cadeira, sobre uma imensa e crescente poça de sangue.
Jandira gritou e correu até o apartamento em que morava, tremendo, digitando o número da polícia no celular, mesmo que relutante, pois odiava ter que tratar com aquele povo. Enquanto atravessava a sala que nada se assemelhava ao lugar importante e sagrado que deveria ser, o lar de uma costureira de almas: tudo estava bagunçado e abarrotado de retalhos de tecidos, roupas inacabadas, papéis de modelagem, máquinas de costura e manequins. Jandira viu que a vela encantada estava toda derretida: havia se esquecido de apagá-la antes de sair de casa.
Desligou a chamada, jogou o celular de lado, colocou a mão na testa empapada de suor e disse, para si mesma:
— Puta que pariu, Jandira.
✦ ✦ ✦
continua…
Obrigado novamente pela leitura, viu? O restante da história vai ser lançado MUITO em breve e vocês já podem fazer a reserva aqui.
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